Depressão sai dos consultórios médicos para ser vista como um sintoma social de uma época que supervaloriza o ritmo frenético de vida
Numa rodovia, dentro dos limites de velocidade, a motorista percebe que um cachorro começa a atravessar a pista repleta de carros. Ela vê que vai atropelar o animal, mas não pode desviar nem frear, sob o risco de provocar um acidente ainda maior. Por milésimos de segundos, vive a agonia de perceber que está em uma velocidade irreversível e que matará um ser vivo.
O episódio – real e com final feliz para o cão, que sobreviveu mancando ao atropelamento – serviu de metáfora para a psicanalista Maria Rita Kehl refletir em seu novo livro, O Tempo e o Cão (Boitempo Editorial), sobre a depressão como um sintoma social de uma época que supervaloriza a velocidade. A obra aborda a doença como um mal-estar da sociedade contemporânea.
O tempo que corre rápido e a ideia de que é preciso estar sempre feliz – ou melhor, encenar a felicidade – podem, segundo a autora, ser as principais causas da depressão. O aumento do número de pacientes se dizendo deprimidos no consultório e o estudo da obra dos filósofos Henry Bergson (1859-1941) e Walter Benjamin (1892-1940), que teorizou a relação entre a melancolia e a aceleração do tempo, são apontados pela psicanalista como os motivos que despertaram seu interesse pelo tema.
Aumento dos casos
A questão era encontrar uma razão para o aumento de casos de depressão. De acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o uso de medicamentos contra a doença tem crescido a uma taxa assustadora no País: 42% entre 2003 e 2007. “Se existe uma causa para esse aumento, ela está na perda do sentido da experiência em função da aceleração da temporalidade contemporânea. Os casos de depressão no consultório me ajudaram a entendê-la como um sintoma social, como um sofrimento que se alastra”, explicou Maria Rita, em entrevista por e-mail ao POPULAR. A velocidade cotidiana, para ela, criaria um vazio, e não um preenchimento.
A psicanalista defende que a depressão é um sintoma social no sentido de que diz respeito não só ao sujeito, tomado individualmente, mas também revela alguma coisa que não vai bem nas condições sociais em que ele vive. Numa sociedade que “aposta na euforia como valor”, a tristeza e o desânimo tendem a ser vistos como patologia, como um comportamento a ser corrigido – de preferência, com remédios. Nessa dinâmica, a fronteira entre tristeza, normal na vida de qualquer ser humano, e depressão tem se perdido.
“A sociedade que acredita no mercado, na festa, no consumo de bens como um caminho para a felicidade e o reconhecimento deveria ser bem menos depressiva”, raciocina Maria Rita, que é doutora em psicanálise pela PUC-SP. Ao contrário, os relatos nos consultórios mostram que as pessoas se sentem cada vez mais vazias e que a vida lhes parece sem sentido. Muitas delas chegam a perder a vontade de viver. “E este mercado não está dando conta de seu papel de dar sentido e valor à vida das pessoas”, afirma a psicanalista.
À luz da medicina, a depressão é uma doença grave, sistêmica e que afeta todo o organismo. Um paciente deprimido que não se submete a tratamento pode desenvolver outras doenças sérias como hipertensão e diabetes, pois fica vulnerável biologicamente. A causa da doença ainda é desconhecida, mas uma das teorias mais aceitas é que ela seria consequência de uma disfunção no sistema nervoso central que diminui e desequilibra as concentrações de dois neurotransmissores (a serotonina e a noradrenalina), substâncias que, em conjunto, regulam o humor e as funções cognitivas.
“É possível diagnosticar um quadro de depressão pela percepção da vitalidade da pessoa, da energia e da força bruta e criativa que ela coloca nas suas relações com o mundo. O estado depressivo se caracteriza pela falta de vitalidade e incapacidade para o prazer”, define o psiquiatra Isaac Efraim.
O que chama a atenção na hipótese de Maria Rita Kehl é que a doença deixa a esfera individual para ser pensada no coletivo. Sai do consultório médico para ser abordada por outras áreas do conhecimento. No livro, a psicanalista compara a depressão, hoje, ao que era a histeria no século 19. A tristeza seria tão mal aceita atualmente quanto era o comportamento feminino não recatado naquela época. Ela ressalta porém que a ideia de que a depressão seja um sintoma social não significa que os depressivos devam ser tratados como casos sociológicos. Os depressivos devem ser escutados, como todos os que buscam a psicanálise, um a um.
Maria Rita critica o abuso do consumo de medicamentos antidepressivos, que, segundo ela, podem até ajudar as pessoas a não se matar e a ter coragem de procurar uma análise ou uma terapia para enfrentar seus problemas, mas não resolvem a situação. “Os antidepressivos, sozinhos, não resolvem o problema que deu origem à depressão. Reduzir a depressão a um problema químico é contribuir para que ela aumente, e não diminua, porque com essa concepção se reduz o lugar do sujeito, como sujeito psíquico, desejante e conflitivo, a uma dimensão insignificante. A depressão é a doença do sujeito que se sente insignificante”, defende.